terça-feira, 18 de janeiro de 2011

"Barbeiro"

O barbeiro Antônio que morava perto da minha casa era conhecido em toda a cidade como o melhor barbeiro da região. Pessoas vinham de todas as cidades vizinhas só para prestigiar seu talento com a navalha. Ele teve uma esposa muito amável que deu a ele três filhas lindas. Infelizmente o barbeiro Antônio teve que criar sozinho suas filhas, já que sua esposa havia falecido por conta de uma inflamação cutânea mal tratada, que também vitimou um vizinho meses antes.
Extremamente religioso Antônio ia sempre à missa de domingo e fazia questão de levar suas filhas junto a ele. Era lá na igreja que o “Tonho”, como era conhecido pelos amigos mais próximos encontrava pessoas diferentes e fazia novas amizades. Coisa rara, já que  era muito fechado e procurava zelar por sua personalidade discreta. Estava quase sempre com o mesmo terno azul marinho, que sua esposa havia lhe dado de presente meses antes de morrer. Cuidava daquele terno como nada na vida, a não ser sua navalha, ferramenta de trabalho. Sempre que o traje se apresentava um pouco descorado ia ao armarinho comprar corante no mesmo tom e tratava de recolorir a peça.
Este presente que tanto cuidava e fazia questão de exibi-lo ao público foi comprado na loja de seu vizinho, o falecido. Sua esposa o havia encomendado e sempre que podia passava na loja para verificar se estava pronto, era muito perfeccionista. Foram cinco meses para a entrega do presente, que não se sabe de quê, já que não era nem aniversário do barbeiro ou qualquer outra data festiva quando foi entregue. Antônio dizia que se tratava da boa fé de sua amada, que tanto o amava a ponto de não haver motivos para presenteá-lo.
Não me lembro muito de sua esposa, eu era muito novo quando ela morreu, mas lembro que era muito religiosa. Apesar disso não freqüentava tanto a igreja quanto seu marido, mas estava sempre rezando. No seu velório as pessoas falavam muito, mas pouco me lembro dos motivos, sei apenas que Antônio não chorava. Ele devia estar conformado com sua fé, já que parecia estar rezando o tempo todo, falando baixinho.
Há cerca de um ano chegou a nossa cidade um circo, o fantástico circo imperial japonês. Foi uma febre, todos iam menos eu. Todas as tardes quando não tinha muito o que fazer e ia jogar conversa fora na barbearia, lá eu ficava sabendo do que acontecia no circo e matava minha curiosidade. Lá também fiquei sabendo do flerte que mudara a vida de Antônio para sempre, pois não era só o circo que viera a nossa cidade naquele tempo.
Lídia chegou na cidade não se sabe de onde, conheceu Antônio na saída da missa de domingo. Chovia muito e por isso o barbeiro lhe deu uma carona até o hotel onde se hospedara. No caminho sua filha menor, um ano mais nova que a do meio e dois que a mais velha, um anjo, a chamou para almoçar com a família. Naquela saia justa causada pela filha o pai não via outra situação se não reforçar o convite. Depois deste vieram outros poucos antes de assumirem o noivado e se casarem rapidamente. Quatro meses depois. Muito se falava sobre isso, mas na época não me preocupava tanto, preferia assuntos sobre bicicletas, dão muito menos trabalho que as mulheres e se nos derrubam as cicatrizes ficam legais para serem exibidas.
Pouco antes de casar, muita coisa já havia mudado na vida de Antônio. Sua barbearia evoluíra completamente, sua aparência seguiu o mesmo caminho. A agora “tony’s barbershop” era referência na região. Até o comércio próximo evoluiu seguindo a tendência e assim todos ganharam. Mesmo quando a concorrência não é pela clientela ela se faz pela atenção. Aquela rua se transformou, a cidade teve que acompanhar e até a administração pública teve que dar seus pulos para acompanhar o progresso.
Mas uma coisa não mudou, seu Antônio continuava usando a mesma navalha de sempre, quanto a isso Lídia não interferira, se preocupava mais em faturamentos e investimentos. Ela dava tanta atenção aos novos clientes que logo era mais popular que seu marido. Já havia até conseguido liberar as três meninas para namorar. E isso aconteceu rápido. Rápido também vieram os problemas, pois agora era muita gente para Antônio barbear. Trabalhava muito, tanto que domingo já não tinha mais ânimo de ir à igreja. Sua navalha começava a reclamar de tanto trabalho e passou a ferí-lo. sede.
Para ajudá-lo Lídia chamou para trabalhar na barbearia um jovem conhecido seu que morava na região, viera logo, mas não adiantou muito, não tinha talento. Antônio devia ensinar tudo a ele, que não saia de sua casa. Acabou mudando-se para lá, a casa ficava atrás da barbearia. Sua nova esposa o tratava como se fosse da família.
Aos domingos as meninas passaram a ir à lagoa da cidade, acompanhadas por seus namorados e sob supervisão de seu pai. Mas o velho Antônio já não agüentava o ritmo imposto por suas filhas e deixou-as sob os cuidados da madrasta. E isso é tudo o que eu fiquei sabendo pela filha mais nova, um primor de garota. Ela disse que o jovem ajudante do pai passou a freqüentar a lagoa aos domingos com a família.
Um dia fui ao “tony’s barber shop”, minha barbicha precisava de reparos, mas não me sentia muito confortável. Seu Antônio não estava com a mesma energia de antes. Tentei puxar assunto várias vezes, mas ele não dava seqüência às minhas frases. Então ele me propôs que eu acompanhasse sua filha mais nova, uma princesa, em uma viagem. Fiquei surpreso, não havia precedente para aquilo e também não entendia o motivo, já que ela tinha um namorado, mais velho, bem mais velho, e além de tudo aparentemente bem de vida, um ótimo partido. Já eu, pobre, magro, ciclista, e feio não tinha predicados consideráveis para aceitar aquela proposta. Mas aceitei. É claro se fosse de acordo com o desejo da filha dele, um desejo.
A encontrei no local, data e hora marcada por Tonho. Ela chorava muito, eu não entendia nada, fui fazer a barbicha e ganhei uma viajem de fim de semana com acompanhante, chorosa, mas era linda assim mesmo. No ônibus me perguntou se eu aceitaria ir com ela para onde fosse para fazer o que quer que fosse. O papo ficou bom. Disse que sim, então ela pediu para descer do ônibus e voltou para casa. E eu atrás. Já era noite. As luzes apagadas. Pediu para que eu não fizesse barulho e me deixou esperando na sala escura. Disse que não queria acordar a família. Eu aceitei.
Sentei-me no sofá. Não via muita coisa a minha frente ou em qualquer direção, apenas brilhos na penumbra. Pouco tempo depois  ouvi passos, falas confusas, gritos sufocados e silêncio. Pensei em ir atrás dos sons, saber o que estava acontecendo, hesitei por algum tempo. Comecei a sentir um frio estranho, meus olhos já se acostumavam com a escuridão, mas mesmo assim não via nada. Tive medo do que podia estar acontecendo e resolvi fazer algo. Agachei-me e pequei um objeto que estava sobre a mesinha da sala. Não segui meus instintos. Queria ter saído daquela casa, mas algo me levava cada vez mais para dentro, parecia que um campo magnético me sugava. Fui tateando as paredes. Abri uma porta pesada de madeira, devia ser bonita, pois senti seus detalhes bem esculpidos. Sobre a cama do casal havia dois corpos nus. Ainda se sentia o cheiro sensual de depravação libidinosa, mas aquele silêncio e frieza gerada pela paralisia dos cadáveres expunham-me a um enjôo eminente. A navalha matara sua sede. Ou não. O quarto ao lado estava vazio, todos estavam reunidos no quarto da filha do meio último do corredor. O pai e as três filhas.
O choro era silencioso convergia à escuridão do lugar. Um pai desgraçado, destroçado e sujo de sangue. Suas filhas se encaravam como em uma despedia. Seu pai, que ignorava minha presença, assim como as outras, confessara sua vingança. Agora a navalha, que se somava a seu braço como a caneta à imaginação do poeta, beberia seu próprio sangue, suas filhas. Primeiro a mais velha, essa era alta, e por isso difícil segurá-la enquanto se debatia como os frangos que via ainda criança ao perderem suas cabeças, mas nesse caso ela seria sacrificada e eu não sabia o porquê. Esvaindo-se em sangue foi sufocada e aos poucos perdendo a força. A do meio ainda estava nua, participou ativa e passivamente da orgia de sua madrasta, essa era mesmo filha de sua mãe, disse o pai antes de atingir sua jugular com sua ferramenta e companheira. Essa chorava, mas não se debateu tanto. Não sei se estava bem amarrada ou o ódio de seu pai a vitimou num instante. Então nesse momento falou com sua filha mais nova, sua flor de lótus. Disse a ela que era pai apenas de uma linda fada. Eu assistia a tudo aquilo com sentimento, mas o frio que sentia me deixava como uma pedra, não entendia nada. Era como se fosse um filme, cinema alemão, mas menos real.
Ela sabia de toda a verdade. Ele levantou a navalha. Ela viu sua mãe morrer. Ele estava ajoelhado a sua frente. Ela o odiava por ser órfã. Ele chorava, mas estava decidido. Ela teceu aquela tragédia. Ele entendia tudo agora. Ela o olhava com desprezo. Ele deu de beber à navalha com seu sangue a última vez. Ela olhou para mim.
Seu pai era alfaiate, ela sabia de toda a história. Desde criança sabia que os fatos a ela apresentados não eram os mesmos que testemunhara em segredo. Com um pouco de influência muda-se o curso da verdade assim como se fosse um rio. Tramou em segredo toda aquela situação, jovem prodígio na arte de tramar. Conhecia seus personagens como peças de xadrez. Jogava com eles visando sua vingança.
Agora eu conhecia a verdade, queria fugir, seu olhar era frio, suas mãos lentas. Apanhou a navalha com lentidão, aproveitava-se de cada segundo. Degustava-os como uma taça de vinho. Sentia um frio no estomago, como se estivesse apaixonado e diante de mim minha musa platônica. E estava. Ela me beijou. Aceitei o destino imposto naquele presente momento. Estava paralisado. Deu de beber à navalha uma vez mais.
30-03-2010

Um comentário:

  1. Lango² que texto phoda (tentei achar outra palavra, mas não deu, quem sabe extraordinário HM/ kk) *-*

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