sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Idiossincrasia



Passava na frente daquela casa todo dia e sempre quis saber o que havia La dentro. Naquela manhã após desligar-se das coisas que já não faziam sentido para ele, resolveu entrar. Não havia nada de diferente no céu. Tudo normal como em um amanhecer de verão. A única coisa diferente naquele dia era a porta da casa aberta. Ele é curioso e por isso resolveu entrar. Também é inocente e não sabe que às vezes é necessário deixar as portas abertas para deixar o ar fluir. Mesmo quando o vazio é a única coisa que se diz existir naquele lugar.
Ao entrar naquela casa, que por fora lhe chamava a atenção por ser linda e bem detalhada. Sentiu-se como um peixe fisgado pelo anzol ou um pássaro a caminho da arapuca. Mesmo assim continuou sua exploração. Sua razão sabia que não era para ele estar ali, mas depois de passar pela porta principal viu uma escadaria improvável. Acessava os quartos enquanto passeava pelas memórias registradas nas gravuras fixadas pelas paredes. O tapete que cobria os degraus faziam se passar por teclas de um piano embalado pela música de Wagner. As janelas estavam cobertas por tecidos pouco translúcidos que deixavam a luminosidade interior apenas suficiente para não se tropeçar em seus pensamentos confusos. Entretanto, os móveis pareciam ter luz própria. Era fácil navegar por dentro daquele ambiente.
Ele é acostumado a confusões. Mas ao entrar naquela casa percebia o quão normal sua vida era. A casa, como disse, estava deserta. A casa era mesmo assim limpa e com o ar respirável. Mesmo assim não respirava. Pelo menos até o momento em que resolveu subir as escadas. O primeiro lance o levou por entre campos e cidades desconhecidas, mas que já ouvira falar. Cenários parecidos com os seus em tempos infantis. Lá reconheceu suas experiências e pensou que se daria bem naquela exploração. Seu pensamento era singelo e por isso imaginava muito além do que devia.
Quando chegou ao andar superior olhou para cima e viu que entrar ali não teria sido boa coisa. Viu a porta por onde entrara aberta. Ficou curioso como era possível. Explorou o quarto de adolescente que cheirava a morango que estava a sua frente. Entrou no closet arrumado e se perdeu lá dentro entre as calças que deviam ser apertadas e as blusinhas sem mangas. Percebeu então que não sairia de lá, estava em uma espécie de jardim onde as árvores cresciam sem poda e estavam se formando como uma floresta fechada. Resolveu sair depressa e tropeçou no abajur que estava perpendicular à cama. Tentou compreender o que acontecia. Desistiu e foi alcançar as escadas. Lá chegando teve que desviar do lustre de cristal que atravancava o caminho pelo teto. Estava pisando o teto, enrugado pelos degraus, como se estivesse no chão. Procurou encontrar uma forma de sair dali. Percebeu que os lances da escada se misturaram enquanto explorava o quarto adolescente. Viu que já estava à tarde e deveria passar pelo quarto adulto com cheiro de canela.
Em tons vermelhos Ferrari, o quarto estava com sua visibilidade interior comprometida pela fumaça de vários cigarros mal apagados pelos cantos como se fossem incenso. Sobre a mesa um livro de Baudelaire aberto chamava a atenção. Aproximou-se para ler alguns versos. “mon esprit humilié/Faire ton lit et ton domaine;/Infâme à Qui je suis lié/Comme le forçat à la chaîne”. Continuava tentando sair dali. Logo desistiria desse plano, acomodara-se. Agora o cheiro era mais sensual. O clima era mais doce e picante. Em seus lábios um gosto azedo se misturava com um toque úmido que não identificava muito bem. Sabia que era divertido. Seu corpo já não mais respondia a estímulos como antes. Agora era mais rápido e intenso. Estava mais guloso. Sabia o que fazer, mas ainda estava preso. Correu para a escada e subiu até cansar-se. Viu que nunca chegaria a uma saída. Já não era mais o mesmo que entrou naquela manhã. Não era mais curioso. Conhecia muito bem onde estava.
Aquelas memórias grudadas nas paredes foram trocadas. Desta vez todas eram bem conhecidas. Muitas eram manipuladas. Ao final do dia ele encontrou uma velha cadeira de balanço. Aquela tranqüilidade passou a ser seu objetivo final. Arrastou-a até uma janela de vidros sujos que dava para a rua. Estava no 3º andar da casa e de lá podia ver no céu as primeiras estrelas da noite. Sabia que havia entrado em um labirinto digno ao de Dédalo. Não sairia de lá vivo. Mas teve uma boa vida ali. Desfrutou de muitas coisas e compartilhou experiências.
A vida lhe era agora algo passado e bem vivido a sua maneira. Voltaria à luz do que reconhecia ser o seu primeiro berço.

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